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segunda-feira, 1 de novembro de 2010

O retrato oval

O castelo cuja entrada meu criado se aventurara a forçar para não deixar que eu passasse a noite ao relento, gravemente ferido como estava, era um desses monumentos ao mesmo tempo grandiosos e sombrios que por tanto tempo se ergueram carrancudos entre os Apeninos, tanto na realidade como na imaginação da Sra. Radcliffe. Segundo todas as aparências, tinha sido temporária e muito recentemente abandonado. Aboletamo-nos em uma das salas menores e menos suntuosamente mobiliadas, localizada num afastado torreão do edifício. Eram ricas, embora estragadas e antigas suas decorações. Tapeçarias pendiam das paredes, adornadas com vários e multiformes troféus de armas, de mistura com um número insólito de quadros de estilo bem moderno em molduras de ricos arabescos de ouro. Por esses quadros, que enchiam não só todas as paredes, mas ainda os numerosos ângulos que a esquisita arquitetura do castelo formava, meu delírio incipiente me fizera talvez tomar profundo interesse. Assim é que mandei Pedro fechar os pesados postigos da sala pois já era noite, acender as velas de um enorme candelabro que se achava à cabeceira de minha cama e abrir completamente as franjadas cortinas de veludo preto que envolviam o leito. Desejei que tudo isso fosse feito, a fim de que pudesse abandonar-me senão ao sono, pelo menos, alternativamente, à contemplação desses quadros e à leitura de um livrinho que encontrara sobre o travesseiro e que continha a critica e a descrição das pinturas. Li, li durante muito tempo e longamente contemplei aqueles quadros.

Rápida e esplendidamente as horas se escoaram e a profunda meia-noite chegou. A posição do candelabro me desagradava e, estendendo a mão, com dificuldade, para não perturbar o sono do criado, coloquei-o de modo a lançar seus raios de luz em cheio sobre o livro. Esse gesto, porém, produziu um efeito totalmente inesperado. Os raios das numerosas velas (pois haviam muitas) caíam agora dentro de um nicho da sala que até então estivera mergulhado na intensa sombra lançada por uma das colunas da cama. E assim vi, plena luz, um retrato até então despercebido. Era o retrato de uma jovem no alvorecer da feminilidade. Olhei rapidamente para o retrato e depois fechei os olhos. Por que isso fizera, eu mesmo não o percebi a principio. Mas, enquanto minhas pálpebras permaneciam fechadas, revolvi na mente a razão de assim ter feito. Era um movimento impulsivo, para ganhar tempo de pensar, para certificar-me de que minha vista não me iludira, para acalmar e dominar a fantasia, forçando-a a uma contemplação mais serena e mais segura. Logo depois, olhei de novo, fixamente para o quadro. Do que então vi claramente não poderia nem deveria duvidar. Porque o primeiro clarão das velas sobre aquele quadro como que dissipou o sonolento torpor que furtivamente se apossava de meus sentidos e sem demora me pôs completamente desperto. O retrato, como já disse, era o de uma jovem. Apenas a cabeça e os ombros, feitos na maneira tecnicamente chamada vignette, e bastante no estilo das cabeças favoritas de Sully. Os braços, o colo, e mesmo as pontas do cabelo luminoso perdiam-se imperceptivelmente na vaga porém profunda sombra formada pelo fundo do conjunto. A moldura era oval, ricamente dourada e filigranada à mourisca. Como obra de arte, nada podia ser mais admirável do que a própria pintura. Mas aquela comoção tão súbita e tão intensa não me viera nem da execução da obra nem da imortal beleza do semblante. Menos do que tudo poderia ter sido minha imaginação que despertada de seu semi-torpor, teria tomado aquela cabeça pela de uma pessoa viva. Vi imediatamente que as peculiaridades do desenho, do trabalho do vinhetista e da moldura deviam ter de pronto dissipado tal idéia, impedido mesmo seu momentâneo aparecimento. Permaneci quase talvez uma hora semi-erguido, semi-inclinado, a pensar intensamente sobre tais pormenores, com a vista fixada no retrato. Por fim, satisfeito com o verdadeiro segredo de seu efeito, deixei-me cair na cama. Descobrira que o encanto do retrato estava na expressão de uma absoluta aparência de vida que a princípio me espantou para afinal confundir-me, dominar-me e aterrar-me. Com profundo e reverente temor, tornei a pôr o candelabro em sua primitiva posição. Afastada assim de minha vista a causa de minha aguda agitação, busquei avidamente o volume que descrevia as pinturas e sua história. Procurando a página que se referia ao retrato oval, li as imprecisas e fantásticas palavras que se seguem:

Era uma donzela da mais rara beleza e não só amável como cheia de alegria. E maldita foi a hora em que ela viu, amou e desposou o pintor. Ele era apaixonado, estudioso, austero e já tinha na Arte a sua desposada. Ela, uma donzela da mais rara beleza e não só amável como cheia de alegria, toda luz e sorrisos, travessa como uma jovem corça; amando com carinho todas as coisas; odiando somente a Arte, que era sua rival; temendo apenas a paleta, os pincéis e os outros sinistros instrumentos que a privavam da contemplação do seu amado. Era pois terrível coisa para essa mulher ouvir o pintor exprimir o desejo de pintar o próprio retrato de sua jovem esposa. Ela era, porém, humilde e obediente, e sentava-se submissa durante horas no escuro e alto quarto do torreão, onde a luz vinha apenas de cima projetar-se, escassa, sobre a alva tela. Mas ele, o pintor, se regozijava com sua obra, que continuava de hora em hora, de dia em dia, e era um homem apaixonado, rude e extravagante, que vivia perdido em devaneios; assim não percebia que a luz que caía tão lívida naquele torreão solitário ia murchando a saúde e a vivacidade de sua esposa, visivelmente definhando para todos, menos para ele. Contudo, ela continuava ainda e sempre a sorrir, sem se queixar, porque via que o pintor (que tinha alto renome) trabalhava com fervoroso e ardente prazer e porfiava, dia e noite, por pintar quem tanto o amava, mas que todavia, se tornava cada vez mais triste e fraca. E, na verdade, alguns que viram o retrato falavam em voz baixa de sua semelhança como de uma extraordinária maravilha, prova não só da mestria como de seu intenso amor por aquela a quem pintava de modo tão exímio. Mas afinal, ao chegar o trabalho quase a seu termo, ninguém mais foi admitido no torreão, porque o pintor se tornara rude no ardor de seu trabalho e raramente desviava os olhos da tela, mesmo para contemplar o semblante de sua esposa. E não percebia que as tintas que espalhava sobre a tela eram tiradas das faces daquela que se sentava a seu lado. E quando já se haviam passado várias semanas e muito pouco a fazer, exceto uma pincelada sobre a boca e um colorido nos olhos, a alegria da mulher de novo bruxuleou, como a chama dentro de uma lâmpada. E então foi dada a pincelada e completado o colorido. E durante um instante o pintor ficou extasiado diante da obra que tinha realizado mas em seguida, enquanto ainda contemplava, pôs-se a tremer e, pálido, horrorizado, exclamou em voz alta: "Isto é na verdade a própria vida. Voltou-se, subitamente, para ver a sua bem-amada... Estava morta!

16 comentários:

  1. Respostas
    1. Também gostei desse conto de mistério e que Deus o abençoe e que

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    2. Minha professora leu na minha sala de aula.
      É muito bom

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  2. nao entendi bulufias mas fiquei com medo

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  3. Este comentário foi removido pelo autor.

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  4. gostei do conto bem legal emocianante

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  5. Amei so q e mt grande vou tentar resumir aki

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